Brasília, segundo Marshall Berman

24/08/2009 at 11:25

Esta é Barcelona, logo antes e no início de sua Reforma Ecletista Hausmaniana (que lá foi art-nouveau e ganhou o nome local de “Modernista”, e com razão: ela não precisou de uma reforma modernista posterior, até hoje), conduzida pelo gênio Antonio Gaudi – seguramente, o maior arquiteto que o mundo jamais conheceu. As ruas eram assim: polivalentes em seus meios de transporte: ônibus a motor e a cavalo, bondes elétricos, pedestres, bicicletas; moleques, senhoras, jovens, idosos.

As cidades eram vivas e faziam viver. Foi essa utopia que perdemos – e segundo Marshall Berman (o fundamental autor de Tudo Que É Sólido Desmancha No Ar), em recente entrevista a Falha de São Paulo (aquele jornal que tem o instituto de pesquisas Databunda, que erra sempre, e diz que a DitaDura foi Mole, a mesma Ditabranda a que emprestou veículos) esta perda teve seu auge no eregimento da distopia brazuca que é Brasília. Veja trecho:

FOLHA – Ainda acha que Brasília é um mau exemplo de modernidade?
MARSHALL BERMAN
– Com certeza. Quando ouvi falar pela primeira vez da cidade, pareceu-me que havia grande coisa lá. Mas os moradores viram que era um desastre levar a vida em uma cidade cujos segmentos não interagem.Se, ao sair do trabalho, você quisesse se reunir com alguém para tomar um café, precisaria tomar um ônibus para outra parte da cidade. Pareceu-me uma coisa perversa, pois, na maioria das vezes, as pessoas não acham que vale a pena.Brasília é construída de modo a evitar que as pessoas se encontrem. Perde-se muito do excitante, do especial da vida moderna. Ironicamente, a América Latina começa com algo como o modelo espanhol de urbanismo, as cidades construídas ao redor da “plaza mayor”.Em Brasília, Niemeyer [que organizou o concurso para escolha do Plano Piloto, vencido por Lucio Costa] não queria funis aonde todos confluíssem. É importante ver o que isso tem de antidemocrático 

FOLHA – Projetos “extremos”, como o de Brasília, são uma coisa do século 20 ou ainda há demanda?
BERMAN – Será que Brasília era apropriada mesmo para os tempos de ontem? Só se você aceitar o modelo de Luís 14 em Versalhes, de o governo manter distância do povo. Luís 14 era um dos heróis de Le Corbusier. Para Niemeyer, seguidor de Le Corbusier e de Stálin, esse estilo de autocracia fazia sentido. Quando as pessoas exigem democracia (e cada vez mais povos fazem isso no mundo), querem o governo a seu alcance. 

FOLHA – A Times Square é o melhor exemplo de modernidade?
BERMAN – Pelo menos um exemplo muito bom. Há outros, como a Picadilly, em Londres, e o que costumava ser a Potsdamer Platz, em Berlim -exceto porque esta foi destruída por bombardeios [na Segunda Guerra Mundial] e o que se construiu depois é muito mais parecido com Brasília.Um dos temas centrais das cidades do século 19 era a multidão. Uma forma de planejamento urbano e de teoria social foi tentar “descongestionar” as cidades ou, em vez de cidades, investir em subúrbios. Dissolver a multidão significa de certa forma separar as pessoas. Juntas, elas têm potencial de ação e de serem algo diferente do que eram; uma forma de controle é espalhar as pessoas.Poderíamos dizer que Brasília é a cidade de ontem, enquanto Curitiba [por seu sistema de transporte público] é a cidade de amanhã. Uma das coisas que amo na Times Square é que se trata de um espaço onde todos colidem. É uma das melhores coisas que podemos ter na modernidade -alguns dos problemas crônicos da modernidade são a automatização, a solidão. 

FOLHA – Em São Paulo, Rio e Brasília, as pessoas compram um carro assim que podem para deixar de depender do transporte público. Em Manhattan, as pessoas caminham ou tomam o metrô. Como isso nos afeta culturalmente?

BERMAN – Há uma tremenda pressão para se evitar a multidão, a ponto de fazer as cidades menos democráticas. Na Times Square, as pessoas podem “conferir” umas as outras.Já nas cidades do “cinturão do sol” é assim: o centro é vazio ou praticamente não existe. Houston [Texas] tem uma demografia bem complicada, nada diferente de Nova York, só que em Nova York ela está na rua, você a vê na rua. Em Houston, as vizinhanças são segregadas, só vemos quão multicultural é a cidade ao vermos as pessoas em seus carros na rodovia.Pensamos “que fascinante! Filipinos!” ou “Olha, coreanos”. Mas não há lugar onde essas pessoas se reúnam. Alguns pensam que isso é um triunfo do planejamento urbano. Estive lá nos anos 90 e vi anúncios de novos edifícios de escritórios que diziam: “Você não precisará mais pôr os pés em Houston”. Iria do seu subúrbio para uma rodovia, para uma garagem subterrânea, fazer compras num shopping.

Excelente definição: Niemeyer misturou o que de pior havia na padronização dessubjetivadora da arquitetura soviética, com o que de pior havia com o subúrbio carro-dependente americano. Claro, há obras de Niemeyer notáveis, em que a beleza não atrapalha a funcionalidade: o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, por exemplo.

No geral, Niemeyer não passa de um escultor habitacional: tão belo quanto desconfortável. Felizmente, ele reconheceu isso inúmeras vezes: quando disse a Getúlio Vargas que Reidi fez um Estádio do Maracanã melhor do que ele o faria; quando afirma que é João Filgueiras Lima, Lelé, e não ele, o maior arquiteto que o Brasil já teve.

Lúcio Costa era alguém que detestava cidades. A Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, não é um acidente num percurso genial: é antes um projeto de vida. Brasília, como ele a concebeu, é uma des-cidade: nas superquadras, é como se se morasse no mato, pleno de bucolismo. Uma cidade sem obrigatoriedade de conviver com o diverso: é algo aparentado da cerveja sem álcool. Lúcio era um excelente arquiteto, mas como urbanista Reidi, Agache e Mario Leal Ferreira lhe davam banho: prepararam grandes capitais para o automóvel, sem despriorizar o pedestre. Brasília exclui o pedestre, sem ser própria para o automóvel. Brasília é um trambolho, um problema sem solução, e não uma solução para um suposto problema.

Pra compensar, abaixo um lindo vídeo mostrando um passeio para afazeres diários, de bicicleta, na única cidade americana que segue um modelo europeu (pedestre, e não carro-dependente) de desenho urbano: a francezinha, a Recife americana, New Orleans. O vídeo, que segue ao som do melhor jazz de rua, é em pleno Mardi Gras, o legendário carnaval do delta do Mississipi: